Texto de Daniel Couto, do site Dom Total
A tríade cinema, literatura e religião sempre tiveram um entrelaçamento íntimo correlacionando as suas narrativas e utilizando-se das características específicas de cada uma para transmitir suas mensagens. Nesta relação, a religião se vale mais das outras duas, pois como expressão cultural e ritual de um povo, tem nas artes uma das suas aliadas para a formação e solidificação do ambiente comum religioso. Isso se torna mais perceptível quando temos filmes e obras literárias nos quais os temas “religiosos” são tratados de forma explícita, muitas das vezes com seus personagens envolvidos nas tramas e os enredos intitulados religiosos. Não são poucos os filmes deste gênero, sobre os santos, sobre as histórias bíblicas, Jesus, seus discípulos e ensinamentos. Também existem inúmeros filmes e livros sobre outras expressões religiosas, documentários, sincronismos e diversos assuntos que vertem sobre as questões ligadas à religião.
Quando vemos os grandes estúdios produzirem filmes como O Senhor dos Anéis, de início pensamos se tratar de mais um filme de fantasia/aventura. A temática épica da luta do herói, que leva um fardo em busca da destruição do mal, já foi contada e recontada diversas vezes durante a história da literatura e do cinema. Porém, qual a ligação desta gigantesca produção cinematográfica (vencedora de dezessete Oscars, no total) com a teologia cristã?
O Senhor dos Anéis é uma obra de J. R. R. Tolkien, um professor e escritor inglês, declaradamente católico e que possuía uma profunda relação com a sua fé. Junto com um amigo – C. S. Lewis – desenvolveram um grupo para discutir a fé cristã e fazer uma apologética moderna ao cristianismo. Diferentemente de Lewis, que escreveu textos teológicos, as obras de Tolkien se passam dentro do universo que ele mesmo criou, Arda e a Terra Média.
Como obra de fantasia, O Senhor dos Anéis se passa em um mundo repleto de magia, elfos, orcs, trolls, anões, hobbits, magos, dragões e inúmeras outras criaturas que povoam a imaginação dos seres humanos, fazendo um apanhado de elementos da mitologia nórdica e das diversas mitologias europeias. A partir desta herança, Tolkien desenvolve uma pretensa “mitologia inglesa” onde o elemento moral é importante chave de decodificação do mundo e dos deuses. Essa moralidade, longe de voltar aos ideais da Grécia, está permeada pelos elementos do cristianismo presentes na sociedade europeia.
No filme podemos perceber que há uma constante luta entre o bem e o mal. Poderíamos relacionar esse conflito com as perspectivas maniqueístas (onde o bem e o mal estão personificados na criação), porém há um único criador e o mal vem ao mundo por causa da liberdade e da escolha dos seres que foram criados, sejam eles os “deuses” ou os humildes filhos da criação. Mesmo que o antagonista, personificando o mal, seja Sauron, o senhor do escuro, temos durante a trama dos três filmes a presença de personagens, como Saruman, que eram bons e lutavam para que a terra média estabelecesse a paz, mas que são corrompidos pela ganância e poder. Há um elemento da liberdade e da consciência do mal que não se adequa à perspectiva maniqueísta, mas é fruto da leitura cristã do mundo.
Sauron, na sua origem, era uma criatura angélica, um maiar, aprendiz dos deuses, e, ao ser seduzido pelo já degenerado Morgoth, passa a desejar o poder e utiliza dos seus artifícios para criar ferramentas de dominação. Essa criatura poderosa que escolhe o mal – numa perspectiva moral – é confrontada por Frodo, que na sua pequenez, física inclusive, aceita o fardo de carregar o objeto mais poderoso, condutor de toda a guerra: o Um Anel. É esse destemido e delicado herói que passa por provas inimagináveis, superando desafios que os poderosos, como Galadriel, Gandalf e Elrond, mestres de muitas eras na Terra Média, não conseguiriam, pois o poder do anel era muito forte e os seduziria. A sedução do mal é um elemento constante no filme, mais uma das percepções cristãs. A serpente que sussurra à Eva, o anel que sussurra ao portador.
A história do Anel está repleta de portadores, e a luta contra os “pecados” é o que parece diferenciar entre aqueles que foram dominados pelo mal e os que conseguiram se livrar do poder controlador de Sauron. Enquanto Frodo, Bilbo e Sam conseguem se desprender do anel, mesmo com a forte influência do poder do senhor do escuro, Gollum passa toda a sua vida buscando o seu “precioso”, fruto do apego e da ganância que desenvolveu com o objeto. A atitude desapegada dos bens materiais aparece desde o princípio, quando os ricos Frodo e Bilbo não tem dificuldades de abandonar as suas fortunas para seguir a estrada. Frodo deixa para trás todo o seu conforto para seguir a demanda por um “bem maior”. O anel corrompe interiormente os portadores, mas os hobbits encontraram uma força extraordinária para lutar contra a maldade. Os mais simples se mostraram intensamente fortes e incorruptíveis.
Frodo, na sua jornada do herói, ainda assimila muitas das virtudes cristãs, como o perdão quando decide que não deveriam matar Gollum, tornando-o um companheiro de viagem, e a compaixão ao olhar para Sam percebendo fardo que eles compartilhavam e a dedicação total do amigo para cuidar dele, renunciado a própria vida a favor do “mestre”.
Além da leitura cristã da mitologia presente em O Senhor dos Anéis, podemos perceber alguns símbolos do cristianismo que aparecem nos filmes, mas que não são explicitamente relacionados com a religião, pois estão revestidos da estrutura mitológica da Terra Média. Quando os hobbits partem para sua missão, depois de encontrar com os elfos, eles recebem o alimento élfico de viagem: o lembas. É uma massa branca, que sustenta durante o caminho e ajuda a enfrentar o fardo da sua trajetória. Este elemento nos lembra, com bastante propriedade, o pão eucarístico dos cristãos e, também, o maná que Deus faz chover no deserto para alimentar o povo de Israel. É também com os elfos que Frodo encontra uma espécie de “capela”, o Salão do Fogo, em Valfenda, que remete às salas de oração dos cristãos com a chama que está sempre acesa e a reunião nos dias de festa. É um salão onde se pode escutar muitas canções e histórias, marco de encontro da comunidade.
Mesmo com todas essas possíveis comparações, percebemos que os filmes do Senhor dos Anéis revelam elementos do cristianismo sem a intenção de cristianizar, mas incorporando aquilo que se tornou valor dentro da sociedade cristã ocidental e reorganizando-os dentro da narrativa mitológica e fantástica do cinema. Longe de ser um filme religioso, ele também se caracteriza como uma das possibilidades de falar sobre a experiência cristã dentro de uma linguagem diferente, utilizando a imaginação, a emoção, a admiração e todos os outros sentimentos e sensações que o cinema proporciona. Isso nos mostra como o cristianismo está marcado na cultura, e que, mesmo construindo mundos imaginários, esses novos lugares também possuem espaço para a mensagem e a luz do evangelho. Os valores morais apresentados por Tolkien em O Senhor dos Anéis, nos ajudam na formação humana, dentro do ambiente lúdico de fuga da realidade e do mergulho na imaginação e fantasia que a Terra Média nos proporciona. Sonhando com os elfos e caminhando pelas montanhas junto com Gandalf e a Sociedade do Anel, podemos nos formar como mulheres e homens melhores.
Fonte: domtotal.com