Texto do Pe. Antônio Ronaldo Vieira Nogueira*
A humanidade viveu, nos últimos tempos, uma confiança em sua própria onipotência, celebrando os grandes feitos da ciência, acreditando ter chegado ao seu estágio de total maturidade, não necessitando mais de nada nem de ninguém. Nesse contexto parece faltar espaço para Deus. No entanto, o pavor das últimas duas Grandes Guerras; o massacre de inúmeros seres humanos, seja nos mais diversos conflitos armados, seja na violência cotidiana em nossas cidades; a fome; a miséria e, mais recentemente, a situação em que vivemos, afligidos pela Covid-19, nos levam a pensar e criticar nossa pretensão de onipotência.
Como nos recorda o frei Raniero Cantalamessa, em sua pregação na sexta-feira santa deste ano: “A pandemia de coronavírus nos despertou bruscamente do perigo maior que sempre correram os indivíduos e a humanidade, o do delírio de onipotência. […] Bastou o menor e mais informe elemento da natureza, um vírus, para nos recordar que somos mortais, que o poderio militar e a tecnologia não bastam para nos salvar”. A Teologia, nessa situação, tem, pois, uma tarefa profética de denunciar tal pretensão humana de onipotência e o faz recordando que só Deus é absoluto, mas esse ser absoluto, teologicamente, só se entende na relação de amor que é a própria Trindade e que se doa por amor à humanidade.
Outra tarefa fundamental da Teologia é dar as razões da esperança (cf. 1Pd 3,15). Se isso é sempre importante em qualquer tempo e lugar, nas atuais circunstâncias em que estamos, é urgente e necessário. Sim, a Teologia pode contribuir, como reflexão-práxis, para a superação do que estamos vivendo, afligidos que somos pelo coronavírus. E ela o faz anunciando e realizando a sempre antiga e tão nova virtude: esperança. Eis nossa tarefa: esperançar!
A esperança na Bíblia é algo muito exigente. Ela não é anunciada em tempos de prosperidade e tranquilidade. Pelo contrário: é em tempos sombrios, de destruição ou desolação, quando tudo parece perdido, que alguém tem a ousadia de anunciar a esperança que brota da promessa de Deus, a qual abre para um futuro insuperavelmente melhor que o presente de tristeza e morte em que o povo se encontra. O modelo de esperança no AT é Abraão: velho, com esposa estéril, acreditou na promessa de Deus de que seria pai de uma grande multidão. Paulo o define como alguém que esperou contra toda esperança (cf. Rm 4,18). Grandes e ousados anunciadores da esperança são os profetas. Paradigmaticamente, podemos recordar o profeta Jeremias que grita, em nome de Deus, cheio de esperança aos desolados exilados: “Há uma esperança para o teu futuro” (Jr 31,17).
No NT, depois da cruz de Jesus, grande foi a desolação dos discípulos: tudo aparentemente havia terminado com a morte do Mestre. No entanto, passado o sábado, dia do grande silêncio, surge a grande Boa Notícia dada às mulheres: “Ele ressuscitou!” (cf. Mt 28,6). A ressurreição é a confirmação da vida de Jesus como a autêntica e verdadeira vida, não mais presa às amarras de espaço e tempo, mas agora uma vida definitiva, escatológica. Na ressurreição de Jesus, Deus cumpre definitivamente e em plenitude todas as suas promessas.
A ressurreição é o fundamento da esperança cristã. Isso foi bela e profundamente dito pelo Papa Francisco na sua homilia do Sábado Santo: “Nesta noite, conquistamos um direito fundamental, que não nos será tirado: o direito à esperança. É uma esperança nova, viva, que vem de Deus. Não é mero otimismo, não é uma palmadinha nas costas nem um encorajamento de circunstância, com o aflorar dum sorriso. Não. É um dom do Céu, que não podíamos obter por nós mesmos”.
‘Tudo correrá bem’: repetimos com tenacidade nestas semanas, agarrando-nos à beleza da nossa humanidade e fazendo subir do coração palavras de encorajamento. Mas, à medida que os dias passam e os medos crescem, até a esperança mais audaz pode desvanecer. A esperança de Jesus é diferente. Coloca no coração a certeza de que Deus sabe transformar tudo em bem, pois até do túmulo faz sair a vida”.
Essa esperança, fundada na ressurreição de Jesus, não decepciona (cf. Rm 5,5). Não se trata de mera animação de circunstância, mas de uma atitude fundamental que encontra em Deus seu próprio fundamento e, a partir da Ressurreição do Filho, enxerga o futuro como dom e promessa, mas também exigência e ação. Na noite escura que ora estamos vivenciando, contemplamos o Ressuscitado para proclamar com o profeta Jeremias que há esperança para o nosso futuro.
Essa esperança cristã tem uma profunda relação com a fé. Pela fé, respondemos com generosidade a Deus que teve a amorosa iniciativa de vir ao nosso encontro, de se fazer próximo, de assumir nossa humanidade através do Filho Jesus Cristo. Deus é crível porque se aproximou da humanidade, se encarnou, tornou-se solidário conosco, chegando ao extremo de partilhar do sofrimento humano nos extremos da dor e do sofrimento da morte. A cruz e a ressurreição de Jesus nos mostram isso. Na cruz, Deus aceita padecer junto com o ser humano, no seu sofrimento. Se diante de tanto sofrimento, nos vem a pergunta: “onde está Deus?”, a resposta que brota da cruz é: está sofrendo junto conosco. E somente um Deus que assim sofre conosco, pode nos tirar da situação de sofrimento, dando-nos uma vida nova e definitiva como fez com seu Filho crucificado.
Dessa vida em plenitude, ainda não experimentamos a plenitude, mas podemos perceber seus sinais pela prática do amor. Aqui se evidencia a relação estreita entre esperança e caridade/amor. Nada há de mais real e frutífero do que o amor. São João nos diz que “se Deus nos amou assim, devemos, nós também amar-nos uns aos outros” (1Jo 4,11). É pelo amor que nos assemelhamos à realidade de Deus, pois é no amor que se é capaz de dar a vida para que outros tenham vida. E nós temos testemunhado isso diariamente. São inúmeros os gestos de quem é capaz de solidariedade generosa, nos hospitais, nas casas de saúde, nas ruas, nas casas e no encontro com os pobres, estende a mão para dar vida e alento a quem padece.
A esperança cristã, fundada no evento definitivo da Ressurreição, não aliena do presente, mas, pelo contrário faz enxergá-lo com mais lucidez e criticidade. O mais do futuro, o definitivo aberto pela ressurreição não se identifica, sem mais, com nenhuma situação, acontecimento, mediação. O excesso da promessa de Deus relativiza e torna-nos críticos de todas as mediações do presente, por mais autênticas e intensas que sejam, e mantém nossas vidas abertas para o futuro da comunhão plena com Deus. Manter essa tensão em direção ao futuro, nos leva a viver com autenticidade e lucidez o presente, trabalhando com amor generoso que nos assemelha a Deus, na capacidade de dar a vida pelos outros, enquanto aguardamos o definitivo de Deus para nós.
Uma esperança assim não decepciona (cf. Rm 5,5), e não decepciona porque nos faz lutar teimosamente contra todo obstáculo que nos impede de ir ao encontro das promessas de Deus, promessas que se concretizam na sua parcialidade para com os pobres e excluídos. A vida cristã e a reflexão teológica continuam dando as razões da esperança, na medida em que se deixam impelir por ela na construção do Reino de Deus, dom e tarefa para o ser humano. Assim, a teologia não só ajuda a refletir, mas a construir um mundo segundo a esperança. Eis nossa tarefa fundamental: Esperançar!
* Pe. Antônio Ronaldo é presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte-CE. Mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) Belo Horizonte/MG e professor e coordenador do Curso Bacharelado em Teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) Fortaleza/CE.
Fonte: domtotal.com