“Os que iam na frente e os que vinham atrás gritavam: ‘Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor! Bendito seja o reino que vem, o reino de nosso pai Davi! Hosana no mais alto dos céus!’” (Marcos 11,9-10).
Lembrava, e gosto de lembrar sempre, como esse movimento litúrgico do Domingo de Ramos e Paixão do Senhor revela algo profundo da antropologia humana, um primeiro aspecto. Porque, numa mesma liturgia, nós passamos do Hosana ao filho de Davi no mais alto dos céus à Paixão e Morte de Cristo, e esta realidade tão contraditória, paradoxal e ambivalente oximoro, nos faz pensar exatamente que a vida da gente é assim. Dentro de um único dia, quantas vezes nós sorrimos, nos alegramos, festejamos e, também, choramos os choros mais amargos que o ser humano pode experimentar. É o risco de se viver, de se estar vivo, é o risco de ser humano, de se alegrar e sofrer, de perder e ganhar, de nascer, morrer, cair, levantar, crescer, diminuir e, assim, nessas contradições próprias, unicamente do ser humano, a celebração do Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor imita a vida, porque ela é a nossa vida e, com isso, ela nos faz pensar como a nossa vida deve ser vivida na capacidade, também, de termos essa consciência maior. Não se trata, então, de se alegrar ou de sofrer, trata-se de acolher que a vida é essa mescla de sentimentos, posturas e experiências humanas tão contraditórias, como tantas que temos experimentado de forma tão intensa no tempo presente, mais ainda do que em outros tempos.
Como, então, podemos crescer com Cristo? Desse Hosana ao filho de Davi no mais alto dos Céus ao coro daquela assembleia alienada, gritando contra Jesus, a mesma que gritou Hosana, gritou crucifica-o e solte Barrabás! E assim, nós vamos pensando em como, muitas vezes, a massa também é vulnerável, como muitas vezes a massa também se torna incapaz de ter discernimento, sabedoria e até coerência. Por isso há que se colocar questões em que nós possamos refletir e respirar a nossa própria vida, a nossa própria condição de ser nesse mundo. E assim continuamos percebendo que, até hoje, também enfrentamos muitas vezes as cenas semelhantes às do tempo de Jesus. Somos capazes de, ao mesmo tempo, exaltar alguém e também gritar crucifica-o, somos capazes também de admirar uma pessoa e, logo depois, também a destruir na palavra, com sentimentos tempestuosos e impulsivos da alma humana. Então o primeiro aspecto que essa liturgia nos ajuda a rezar é a dimensão antropológica da nossa condição de ser, na vida.
Um segundo aspecto que vem de um dos personagens mais intrigantes desse domingo é o jumentinho. Onde já se viu o Rei de Israel, Jesus, o Rei filho de Deus, às avessas dos reis desse mundo, entrar num jumentinho? Esse animal era insignificante na cultura do tempo de Jesus e, até hoje, não é muito diferente. Entre um jumentinho e um cavalo nobre, com certeza, a humanidade continua preferindo um cavalo nobre, sangue puro, manga larga marchador, e por aí vai. Então, como se pode celebrar tamanha grandiosidade com gesto de um animal tão insignificante aos olhos humanos? Talvez um dos ensinamentos que Jesus quer nos passar ao eleger esse jumentinho como um dos personagens mais interessantes, dentre outros, dessa narrativa do Domingo de Ramos e da paixão do Senhor é que Deus prefere os humildes. Deus elege os pequenos, os mansos, os humildes, os que mais sofrem, os mais vulneráveis. Como qualquer pai e mãe de bom senso, ainda que tivesse dez filhos e amando-os com amor infinito, amaria a partir dos mais vulneráveis. Dentre os dez, se tiver um enfermo, se tiver um com mais dificuldades na escola, com problema de saúde, tenha certeza, um bom pai, uma boa mãe, ainda que ame a todos os filhos, amará ainda mais aquele que mais precisa.
Por isso, quando nós falamos na igreja, na liturgia, que Deus ama a todos, mas, principalmente os mais pobres, e entendendo aqui desde o pobre, como aquele que está indigente materialmente falando, mas aquele também que é enfermo, aquele que é idoso, aquele que é criança, aquele que é portador de deficiência, aquele que faz parte das minorias de exclusão social, a igreja está dizendo exatamente aquilo que qualquer bom pai e boa mãe diria diante de dez filhos. Questionados pelo tamanho do seu amor, um bom pai e uma boa mãe diriam: meu filho, minha filha, eu amo você tanto quanto, mas esse seu irmão precisa mais do que você.
É assim, meus irmãos, que nós devemos compreender a mensagem da semana santa desse personagem humilde, quando Jesus quer nos ensinar, e continuar nos ensinando, que a história da salvação não é feita ou contada a partir dos grandes da história desse mundo, das referências de grandiosidades e importâncias desse mundo. Por isso, o maior, insiste o mestre, seja o menor, por isso o primeiro seja o último, o mais importante e o que mais serve, aquele que leva um tapa na face dê a outra face, aquele que é e ferido de ofensa moral ou o que quer que seja, que perdoe infinitamente, setenta vezes sete, ou seja, Jesus, de fato, nos ensina que, nesse caminho da humildade desse personagem tão insignificante, há um significado incompreensível, até hoje, aos olhos do ser humano, que, muitas vezes, guia o seu coração muito mais pela grandiosidade e até vaidade dos personagens potentes da história humana, que quase sempre não aparecem como importantes, nas histórias ou narrativas ou encontros de Jesus.
Que esta mensagem, essa inspiração que Jesus nos dá, nos oferece com esse discípulo de Ramos, o jumentinho, aquele que está a serviço do mestre, que ele também nos faça compreender que a nossa grandiosidade cristã não está na opulência da história humana, dos referenciais da sociedade, da cultura, do mundo de hoje. Muito mais na pequena via, na via das pequenas coisas, dos pequenos gestos, da pequena simplicidade que habita a grandiosidade da nossa própria existência. Benditos os jumentinhos que nos carregam, então, em tempo de pandemia. Benditos os jumentinhos que sustentam a nossa vida familiar, os pequenos gestos, os pequenos hábitos e as pequenas práticas, escolhas que, de fato, dão sentido e significado a nossa vida. Se é verdade que grandes vazios habitam e atravessam o nosso caminhar nesse tempo presente, é bem verdade que, também, nobres e belos sentidos e significados nascem desses mesmos vazios, e esses vazios encontrarão única tradução nessa próxima Sexta-Feira Santa, o túmulo de Cristo, e, depois da manhã de ressurreição do domingo, o túmulo vazio. Ora, por que não dizer que Deus habita os vazios de nossas vidas?
Deus habita os nossos túmulos, as nossas Via Crucis, as nossas vias-sacras, as nossas vias dolorosas, por isso Deus não está lá em cima, nos altos dos céus, intocável, imperceptível aos nossos momentos de vida. Pelo contrário, Deus está no vazio, Deus está no choro da criança, que chora sem entender a ausência da mãe que partiu nessa noite escura, Deus está no pranto daquele pai que, ensaiando tanto ter um filho, perdeu a esposa, Deus está naquela mulher, naquela senhora que, mesmo tendo viajado num tempo tão incomum e indevido, volta para casa com as cinzas do marido na sua mala, para sepultá-las em sua terra. Deus está na fome daquele irmão e daquela irmã que, desempregados, não sabem onde buscar o alimento para dar aos seus filhos que passam fome. Deus está no vazio da prostração de sentido daquele homem e daquela mulher que, não encontrando mais sentido na vida, pedem a Deus que tire a sua própria vida, nesse tempo que atravessamos.
Portanto, meus irmãos, não busquem Deus na opulência da história, na grandiosidade e nas vaidades deste tempo, mas busque, sim, Deus naquilo que é imperceptível aos nossos olhos e que temos, às vezes, tantas dificuldades de ver e nomear, como alguém que só reconhece aquilo que é da cultura ou grandioso e não reconheceria jamais a importância daquele jumentinho que Jesus elege como seu principal ajudante na entrada de Jerusalém. Assim como Jesus elegeu os coxos, os aleijados, ele também nos escolheu, e acolheu os apóstolos rudes, os pescadores, os homens simples, as mulheres, até de fama duvidosa, enfim, Jesus, que elegeu e continua elegendo os mansos e humildes de coração, reconhecendo a sua pequenez, sabe que só pode se sentir grande em Deus.
É assim, meus irmãos, que nós convidamos cada um nesta Semana Santa, na humildade até das celebrações despidas de massa, aglomeração, despidas de ritos públicos, de cenas belíssimas da liturgia, despidas de coros grandiosos em quatro vozes em instrumentos tantos, despida de humanidade e, ao mesmo tempo, naquilo que resta, no essencial dessa humanidade, ele vai reconstruindo a história, que começa com o nosso sim. É por isso que, junto desses personagens tantos do evangelho, como o Cireneu que ajudou Jesus a carregar a cruz, José de Arimateia que pensa na dignidade daquele corpo a ser enterrado, nas mulheres perseverantes no caminho da via dolorosa do mestre, dentre elas, Maria, sua mãe, que, em algum desses personagens, vocês se permitam a dar as mãos e pedir-lhe insistentemente, conduza-nos até a meta final, Senhor, ensine-nos a caminhar também nesse tempo de tantos descaminhos e descompassos, para que nós não percamos o olhar na palavra final: Ele Ressuscitou!
Padre Marcelo Silva, sss
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem
Homilia da Solenidade de Domingo de Ramos – 28/03/21
Texto revisado por Liduina Araújo.