A música da Eucaristia

A música da Eucaristia

Fazer com que a música da Eucaristia vibre e ressoe 

No último capítulo da encíclica “Fratelli Tutti” (FT), o Papa Francisco chama às religiões para estar a serviço da fraternidade no mundo. Escreve: “As diferentes religiões, a partir da valoração de cada pessoa humana como criatura chamada a ser filho ou filha de Deus, oferecem um valioso aporte para a construção da fraternidade e para a defesa da justiça na sociedade” (FT 271). “Como crentes, pensamos que, sem uma abertura ao Pai de todos, não podem haver razões sólidas e estáveis para o apelo à fraternidade” (FT 272).

Para nós, este manancial de dignidade humana e fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo. Dele brota, “para o pensamento cristão e para a ação da Igreja, o primado reservado à relação, ao encontro com o mistério sagrado do outro, à comunhão universal com a humanidade inteira, como vocação de todos” (FT 277).

Com ajuda de uma bela e poética imagem, a da música, o Papa nos convida para fazermos vibrar em nosso interior a música do Evangelho, para não perdermos a alegria que emana da compaixão, a ternura que nasce de confiança, a capacidade de reconciliação que encontra sua fonte no fato de saber que sempre somos perdoados e enviados. Nos convida para fazermos ressoar a música do Evangelho em nossas casas, em nossas praças, em nossos locais de trabalho, na política e na economia, para não apagarmos a melodia que nos impulsiona a lutar pela dignidade de cada homem e mulher (cf. FT 277).

O Papa Francisco também faz um chamado à experiencia de fé e sabedoria acumulada ao longo dos séculos (cf. FT 274 e 275). Podemos recorrer à experiencia de fé e sabedoria de São Pedro Julião Eymard para fazermos vibrar e ressoar a música do Evangelho da Eucaristia.

Contemplar o Cristo

 Uma primeira atitude que podemos ter da experiência espiritual do Padre Eymard é a contemplação de Cristo no mistério da Encarnação e na parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37).

Jesus, o nosso irmão

 Nos escritos do “Grande Retiro de Roma” (1865), Padre Eymard medita sobre “Deus Amor”. O amor de Deus manifestou-se pela primeira vez na criação. Este amor atingiu seu auge quando o Pai enviou seu Filho para se tornar um de nós. A encarnação é a grande prova do amor de Deus pelo homem. Na encarnação, Jesus assume o rosto dos esquecidos, dos excluídos, dos pobres, dos oprimidos.

“Deus ama o homem e, para que o homem soubesse, se fez um deles, para ser seu irmão na carne – e o verbo se fez carne [Jn 1,14]; – e se fez pobre, o último dos pobres, para abraçar todos como irmãos, – se fez criança, para ser irmão das crianças e do pobre no estábulo” (NR 44,102).

Em outro texto, desta vez retirado das Constituições das Servas do Santíssimo Sacramento, Padre Eymard nos convida novamente a contemplar a Encarnação de Jesus Cristo. “Jesus quis ser o último dos pobres para poder chegar aos mais pequeninos e dizer-lhes em verdade: Eu sou vosso irmão. De fato, não há nenhuma pessoa pobre que tenha nascido tão miseravelmente, tão pobremente como o Verbo Encarnado, nascido no estábulo de Belém. Exilado para o Egito, viveu ali, sem pátria, sem família, trabalhando com obediência, comendo o pão de cevada dos pobres, dormindo, sobretudo, nas florestas ou nas montanhas, vivendo ainda da esmola nos dias da sua vida evangélica, e morre, como os pobres abandonados, sequer morrem”. (RS 12,26).

Quem quiser seguir o Cristo e ser discípulo do seu amor, encontra seu ponto de partida no amor de Jesus Cristo, que pessoalmente o amou primeiro. O discípulo de amor “ama considerar este amor de Deus tão presente na encarnação, Deus Padre amando o homem doente, caído, pecador, até o ponto de lhe entregar o seu próprio Filho como seu salvador. Contempla este amor substancial do Pai, do Verbo Encarnado, Jesus Cristo amando o homem até o sacrifício da sua própria glória, até sacrificar sua vida, amando-o até a loucura, se fazendo pobre para ser amigo e irmão dos pobres; fraco, para ser amigo dos fracos; artesão para trabalhar com o artesão; exilado para consolar aos exilados; prisioneiro para ser consolador dos prisioneiros; perseguido para consolar ao inocente; traído, negado, açoitado, vaiado, crucificado, amaldiçoado na cruz por amor ao homem. Este é o Deus do amor. Oh, quando reconhecemos Ele, quando sentimos as doces chamas desse amor, quando já se viu essa face resplandecente de bondade e doçura, quando a gente encontra esses olhos cheios de ternura e bondade, quando ouvimos as vivas palavras do seu coração, quando ele falou: ‘Vem comigo’… Quem poderia resistir a tantos encantos, a tanto poder? (…) Jesus Cristo ama os pequeninos, os humildes, os pobres, os misericordiosos, os caritativos, os sofredores; o discípulo de Jesus Cristo ama eles em seu Mestre, os amigos dos meus amigos, são meus amigos” (RA 17,2).

A contemplação do amor de Jesus Cristo nos leva a amar a cada homem que é irmão de Cristo.

Jesus, o bom samaritano

 O Papa Francisco, na sua encíclica, nos oferece uma bela interpretação da parábola do bom samaritano (cf. FT 56-86).

Nos escritos do Padre Eymard (cf. As Obras Completas) encontramos, ao menos, vinte vezes alguma referência a esta parábola. Eis aqui um exemplo. “consegue ver esse homem, quase morto e abandonado por cruéis assassinos, caminho a Jericó? Esse homem é a humanidade despojada, ferida, morrendo à beira do caminho da vida e da eternidade. (…) aqui vem o samaritano misericordioso. Considera desafortunado a este homem e seu coração é tocado: Tocado pela compaixão [Lc 10,33], aproxima-se dele, cura suas feridas e o carrega até uma pensão para continuar cuidando dele [cf. 10, 34-35]. Este samaritano caridoso é Jesus Cristo; que passa pelo caminho da vida, seu coração é todo caridade, ama aos sofredores, cura com o seu sangue e seu amor as feridas gangrenadas. Jesus Cristo passará por aqui; Há algum sofredor aqui? Através de nós, Ele irá curar teus ferimentos até sarar” (PD 15,2).

O Padre Eymard, continuando uma tradição que vem desde os Padres da Igreja, reconhece no Bom Samaritano a Jesus Cristo e no homem jogado no caminho, toda a humanidade. Jesus Cristo é o Bom Samaritano, o médico que carrega sobre si os nossos ferimentos, nossas dores, nossa leveza (cf. PO 1,3 e PD 14,11). Jesus tem um coração gentil; ama o seu próximo; quer o seu bem. “O bom samaritano é como uma doce mãe: É Jesus Cristo. Cada criança fraca, o pecador, os justos, todos têm um lugar de ternura em seu coração”. (NR 44,97).

Através da parábola do Bom samaritano, Jesus explica quem é seu próximo e deixa em claro que uma das qualidades do amor tem que ser a universalidade. Este amor é dirigido a “todos, amigos e inimigos, parentes e desconhecidos, superiores e inferiores” (PE 2,19).

Hoje, Padre Eymard sugere em seu comentário, que a ação de Jesus Cristo, o Samaritano caridoso, deve continuar através de nós. “Há alguém infeliz aqui? Através de nós curará tuas feridas até elas sararem” (PD 15,2). “Existem outros infelizes jogados por aí; Jesus Cristo nos envia a curar suas feridas até elas sararem” (PD 14,14).

Padre Eymard atuou na caridade samaritana especialmente com o trabalho da Primeira Comunhão para adultos. Abriu o seu coração aos seus irmãos, os mais carentes, assim como o tinha aberto a Deus. Estava convencido de que uma vida não poderia ser plenamente eucarística se não fosse consagrada a Deus e aos homens (cf. RV 2). Ele tirou proveito, e aqui fazemos uso das palavras do Papa Francisco, “a grande chance de demonstrar que, em essência, somos irmãos e temos a oportunidade de ser outros bons samaritanos, é podendo assumir a dor do fracasso, em vez de acentuar ódio e ressentimento” (FT 77).

Ao se comprometer com o trabalho da Primeira Comunhão dos jovens trabalhadores, Padre Eymard começou pelas situações que estavam mais perto dele, pelos mais empobrecidos, lutou pelo concreto pela realidade que estava do seu lado, com a mesma atenção que o viajante samaritano atendia cada ferida do homem jogado à beira do caminho. Assumiu a realidade que se lhe apresentava, sem temor às dificuldades ou à impotência, “pois ali está todo o bem que Deus semeou no coração do ser humano” (FT 78).

A Eucaristia: vínculo fraterno e sacramento de unidade

 Ficamos surpresos de não encontrarmos uma referência explícita à Eucaristia na encíclica “Fratelli Tutti”. Podemos explicar esta ausência pelo fato de que o Papa Francisco escolheu a linha horizontal da fraternidade humana, ele quiz dirigir sua mensagem a todo ser vivo, sem distinção nenhuma. Porém, a linha horizontal precisa da linha vertical do amor, que vá além de todos os limites humanamente concebíveis, e que nos chegam de Deus. Nas anotações pessoais do Padre Eymard encontramos o seguinte: “Esta é a unidade dos cristãos. Esta unidade social é baseada na fraternidade que Jesus Cristo concedeu aos homens chamando-os seus irmãos, seus amigos…” (NP 2,14).

Podemos ler entrelinhas e descobrir, na encíclica, referências à Eucaristia. O Papa cita um famoso texto de São João Crisóstomo, que expressa um desafio que enfrentamos os cristãos: Viver a fé que é favorável a uma abertura de coração aos irmãos como garantia de uma autêntica abertura a Deus. São João Crisóstomo, em uma pregação sobre o Evangelho de Mateus escreveu: “Quer honrar o corpo de Cristo? Não o deve menosprezar quando estiver nu. Não o honre aqui [na igreja] com panos de seda, enquanto lá fora, padece frio e está despido” (cf. FT 74). Este texto está profundamente relacionado com a Eucaristia.

O Papa nos chama, frente às enormes dificuldades, a não atuar isoladamente, individualmente. “O samaritano procurou um hóspede para que cuidasse dele; também nós estamos chamados a nos mobilizarmos para nos encontrar com um ‘nós’ que é maior que a somatória de pequenas individualidades” (FT 8). Nos chama a dar sustentação e força ao “nós” da casa comum (cf. FT 17 e 35), a trabalhar “todos juntos” (FT 8).

Esse “nós” do qual fala o Papa, encontra na celebração da Eucaristia, uma grande escola, onde rezamos em família. Na liturgia é o “nós” que permanece. Durante a celebração da Eucaristia aprendo a pensar, já não no “eu” e sim no “nós”, aprendo a me converter e construir o “nós”.

Por isso rezamos ao “nosso” Pai por “nosso” pão de cada dia. Esta oração destrói as barreiras entre nós e nossos vizinhos, e nos conduz até a vida divina à que estamos chamados.

E, finalmente, o Papa nos convida a pedir a “Deus para fortalecer a unidade dentro da Igreja, que é enriquecida pelas diferenças que são harmonizadas pela ação do Espírito Santo”. “Não podemos esquecer o desejo expressado por Jesus Cristo: ‘que todos sejam um’ (Jo 17,21). (…) Neste caminho até a plena comunhão, temos agora a obrigação de oferecer a todos o testemunho comum do amor de Deus, trabalhando juntos a serviço da humanidade” (FT 280).

A Eucaristia é, por excelência, o sacramento da unidade. O Padre Eymard está profundamente convencido do poder da Eucaristia, que constrói fraternidade e unidade; “na Eucaristia todos somos irmãos com nosso primogênito [Cristo]” (PP 43,2), diz.

Eis aqui algumas das suas convicções:

“O culto ao Santíssimo Sacramento estabelece em todos os lugares (…) um vínculo fraterno de caridade” (CO 1488,2). “A Eucaristia é o vínculo fraterno entre os povos; Só há irmãos e irmãs no sagrado banquete, ao pé do altar; é uma família só” (RA 19:7). “A Eucaristia é o pão, o alimento comum, o vínculo de todas as crianças. Tira esse vínculo e não haverá mais irmandade” (PP 36,1).

“Não é a Eucaristia que tem que restaurar a sociedade? (…) aquilo que une os amigos é a mesa comum, lugar onde se produz a unificação do coração. É isto que faz a mesa divina: os ricos e os pobres reunidos ali, sem privilégios de status, pois todos somos discípulos de Cristo. A Eucaristia é, portanto, o centro da humanidade. Se tirarmos a Eucaristia, não haverá nenhum vínculo. Por isso a fraternidade teve início no Cenáculo” (PD 32,5).

Para Padre Eymard o fruto da comunhão é a caridade, o amor. Comentando o texto do Evangelho de São João: “Este é o meu mandamento: amem uns aos outros como eu amo vocês” (Jo 15,12), diz: “a verdadeira caridade só pode vir do amor de Deus; o homem, por natureza, é egoísta. A caridade é o fruto divino da Eucaristia. A Igreja, onde reside Jesus Cristo, é a casa de todos, a casa do padre; o encontro de todos os membros da família. Na Santa Eucaristia, Jesus Cristo se doa ele mesmo, se sacrifica por todos para nos ensinar a nos doar a nós mesmos, a nos dedicar aos nossos irmãos, os membros de Jesus Cristo. Na comunhão, Jesus Cristo se entrega completamente a cada um de nós, para que sejamos irmãos, membros de um mesmo corpo. É aqui de onde a caridade do cristão e do sacerdote recebe a inspiração e o alimento de cada dia” (PC 12,9).

O chamado à vocação eucarística é um chamado à unidade. É isto que o Padre Eymard fala com clareza para suas freiras, as Servas do Santíssimo Sacramento: As vossas características diferenciadas, a vossa educação diferente, isso tudo deve conduzir à unidade, vocês são o trigo de Deus, como falou Santo Inácio Mártir, devem ser triturados para formar a mesma farinha e o mesmo pão eucarístico. (…) vocês devem ter um só coração e uma só alma [cf. Atos 4,32]; Porém, se por alguma desgraça, a caridade humana não as unisse, se não dão conta de se ouvir nem suportar mutuamente, oh, então seria uma prova de que não seriam o que Deus escolheu, e então não seriam as minhas filhas, confio em que tal desgraça não aconteça com vocês” (PS 49,2).

A interpretação que Padre Eymard faz do pão, que Cristo utilizou para instituir o sacramento da Eucaristia, é interessante desde o ponto de vista da fraternidade e da unidade que somos chamados a construir.

Assim como um pedaço de pão se compõe de vários grãos, a sociedade da Igreja está formada por uma multidão de fiéis puros e livres do pecado mortal, e unidos pelos laços da caridade. No pão, a união de três coisas significa três tipos de fraternidade ou laços de caridade entre os fiéis: Reúnem-se os grãos mais belos e parecidos entre si: significa a irmandade natural, todos nascidos do mesmo pai.

  1. À farinha se adiciona água e vira massa; significa a irmandade dos sacramentos, todos regenerados no mesmo sacramento da Igreja.
  2. O pão solidificado pela ação do fogo significa a irmandade espiritual: todos unidos pelo mesmo espírito, na religião cristã. (NP 61,8).

Em uma cultura cada vez mais individualista, a Eucaristia constitui uma espécie de “antídoto” que atua na mente e no coração dos crentes e semeia continuamente neles a lógica da comunhão, do serviço e da partilha; faz vibrar e ressoar a música do Evangelho.

O Papa Benedicto XVI, na Exortação Apostólica “Sacramentum Caritatis”, escreveu que a união com o Cristo, realizada no sacramento, abre-nos à novidade das relações sociais, pois a “mística” do sacramento tem caráter social. “realmente, quem participa da Eucaristia deve se comprometer com a construção da paz num mundo marcado por tanta violência e guerra, e particularmente hoje, marcado pelo terrorismo, a corrupção econômica e a exploração sexual. (…) Precisamente, por causa do Mistério que celebramos, devemos denunciar as circunstâncias que atentam contra a dignidade do homem, por quem Cristo derramou seu sangue, confirmando assim o elevado valor de cada pessoa” (n. 89).

Optar, sob qualquer circunstância, pela fraternidade

 “A vida, escreve o Papa Francisco em sua encíclica, é a arte do encontro, mesmo tendo ela tantos desencontros” (FT 2015). A música da Eucaristia se compõe pelas notas da comunhão, da fraternidade, da construção de relações verdadeiras e laços de fidelidade. “um ser humano está feito de modo tal que não se realiza, não se desenvolve, nem pode alcançar a sua plenitude, se não passa pela entrega verdadeira de si aos demais. Sequer chega a reconhecer profundamente a sua própria verdade, se não for no encontro com os outros” (FT 87).

Durante a sua permanência em Roma, para tratar do assunto do Cenáculo de Jerusalém, o Padre Eymard recebe uma carta do Padre De Cuers, seu primeiro companheiro. Não conhecemos o conteúdo dessa carta. Porém, suas anotações nos permitem compreender a magnitude de sua angústia e da dor provocados por esta carta recebida no dia 9 de março de 1865. O Padre Eymard fala do “tormento que que viveu durante uma hora”, vindo deste “querido coirmão, que não enxerga além das suas velhas ideias”. Só por alusão, percebemos as atitudes hostis do Padre De Cuers contra o Padre Eymard, e são o suficientemente claras para entender os sofrimentos que suportou.

De Cuers não economiza censuras ao padre Eymard frente à lentidão do procedimento relacionado ao Cenáculo de Jerusalém e está longe de compartilhar a visão de Padre Eymard sobre a Eucaristia. O Padre De Cuers era mais adepto a “uma vida puramente contemplativa”, porém, para Padre Eymard a Eucaristia é “lar e fogo” (cf. CO 1030), contemplação e apostolado.

Quanto a atitude de Padre De Cuers, Padre Eymard só rezava. “Eu me joguei aos pés de Nosso Senhor. Rezava junto com Ele no monte das oliveiras: ‘Afasta de mim este cálice’. [Mt 26,39]. Repeti: Jesus, manso e humilde de coração, faz com que meu coração seja como o teu”.

 Depois assume a atitude de silêncio para imitar a Jesus Cristo. “devo chegar ao silêncio, à supressão do meu juízo, até ver com a claridade de Deus, no frio da verdade, na paz da caridade e na santidade da lei” (NR 44,91). Padre Eymard suspende todo tipo de juízo e procura ver as pessoas, os eventos e as perguntas através dos olhos de Deus.

Suas anotações nos informam como ele viveu a sua relação com seu “estimado companheiro” que lhe faz sofrer. Convertendo-se para nós em um modelo para “desenvolver uma cultura de encontro, que vá além da dialética que se enfrenta” (FT 215). “Tenho agradecido a Nosso Senhor – escreve Padre Eymard – por esta tempestade que, de quando em vez, eleva as ondas”. Inclusive nas provações de mais dor, Padre Eymard permanece em atitude de agradecimento, mantém uma atitude eucarística. “teve a obrigação de recitar o miserere, prostrado, com os braços estendidos em cruz. Quanta violência! Isto não pode vir do espírito do Nosso Senhor, e seria, para mim, causa de inúmeros pecados, se Deus não me deter… e talvez para a Sociedade, a causa de grandes perturbações. O fato de me ofender, de doer, de me cravejar no seu caminho, pelos seus princípios, pelas suas palavras contrárias, isso tudo não pode legitimar um estado de irritação, uma disposição a lhe humilhar: isso seria pessoal demais”.

O Padre Eymard também analisa o que passa pela sua alma, tenta entender por que reagiu, o porquê dessa carta doer tanto assim. Aplica o que o Papa escreveu em sua encíclica para viver o perdão e a reconciliação nos conflitos. “Devo também reconhecer que o severo juízo que levo no meu coração, contra meu irmão e a minha irmã, que essa cicatriz que nunca sarou, que essa ofensa que nunca se perdoa, que esse ressentimento que só me prejudica, é um novo episódio de guerra em mim, um fogo em meu coração que deve ser apagado antes de ascender” (FT 243).

Depois de analisar a sua atitude, padre Eymard dirigiu sua atenção ao querido companheiro. “Ademais, atua e acredita em que está fazendo o correto. É uma alma que se apega aquilo que pensa ser o melhor, e que tem medo de se entregar à discrição. Portanto, Deus não lhe permite ter essa luz; não é responsável dela. Assim, erro ao querer ser superior com ele”. Esforça-se “em reconhecer o direito do outro a ser ele mesmo e a ser diferente”, como tem escrito o Papa (cf. FT 218).

E, finalmente, toma a resolução de abandonar-se, em silêncio, à oração. Reza e pede desculpas. “o que devo fazer é me colocar em silêncio, esperando as oportunidades da Divina Providência. – É deixar a questão dos outros e olhar só o silêncio, a paciência, a doçura, a caridade e fazer com a oração o que não devo fazer com a espada. Porém, não comunicar a ninguém meu pequeno julgamento, seria como arrancar as folhas da flor” (NR 44,93).

Inclusive nesta difícil relação com Pe. De Cuers, Padre Eymard não desiste de escolher a fraternidade; não faz prevalecer o fato de ele ser o Superior, escolhe o amor fraterno, a doçura; escolhe cultivar a benevolência (cf. FT 222).

O Papa Francisco, na sua encíclica, fala da benevolência, que é fruto do Espírito (cf. Gl 5,22). Isto expressa, escreve, “Um estado de ânimo que não é áspero, rude, duro, e sim afável, dócil, que sustenta e conforta. A pessoa que possui essa qualidade ajuda aos demais a que a sua existência seja mais suportável, mais ainda, quando carregam o peso dos seus problemas, urgências e angústias. É um modo de tratar os outros manifestado de diversas formas: com amabilidade no trato, com o cuidado para não magoar com palavras ou gestos, com uma tentativa de aliviar o peso aos demais. Consiste em falar palavras de afeto, que reconfortam, que fortalecem, que consolam, que estimulam, e não falar palavras que possam humilhar, entristecer, irritar, nem despreciar o outro. (FT 223). “O cultivo da bondade não é detalhe menor nem uma atitude supérflua ou burguesa. Ela carrega valoração e respeito, quando se faz cultura numa sociedade, transfigura-se profundamente o estilo de vida, as relações sociais, o modo de debater e de confrontar ideias” (FT 224).

Durante os dias de “tempestade”, no seu caminho para escolher a fraternidade, Padre Eymard encontrou ajuda na Virgem Maria. Invocou-a para superar a sua dor. Do mesmo modo, o Papa escreve: “Para muitos cristãos, este caminho de fraternidade tem também uma Mãe, chamada Maria. Ela recebeu, frente à cruz, essa maternidade universal (cf. Jo 19,26) e permanece atenta, não só a Jesus, mas também « a todos os seus descendentes» (Ap 12,17). Ela, com o poder do Ressuscitado, quer gerar um mundo novo, onde todos possamos ser irmãos, onde haja lugar para cada pessoa afastada da sociedade, onde brilhem a justiça e a paz” (FT 278).

O padre Eymard examina as atitudes de Maria, atua como seu Filho, sua caridade era a caridade de Jesus. “Ela pensava o pensamento de Jesus. Vivia em uma união de virtude e obras. Não se preocupava por si mesma, só de Jesus, por Jesus ou em Jesus. Por isso ela era tão doce, humilde e servidora de todos! Estava ciente de que Jesus iria sofrer e conhecia os seus inimigos, seus verdugos. Mesmo assim, ela não desanimou. Ela foi boa, inclusive para Judas. Sua caridade era à do seu divino Filho. Eu pedi à esta bondosa Mãe – seu espírito de mansidão, sua doçura, sua tranquilidade, sua prudente paciência e sabedoria – para me livrar da tentação… Decidi não me deter nas penas, nem nos temas de dor, decidi desculpá-lo, justificá-lo, honrar as suas virtudes, atuar simples, fraternalmente, e frente a Deus, para confessar a minha miséria. Sou o doente que deve ser curado, o febril que deve ser acalmado, o homem sensível. O amor próprio ferido está no fundo disso tudo” (NR 44,94).

Padre Eymard toma decisões em relação ao seu irmão, para atuar “simples e fraternalmente”. Não é só desculpar e justificar, mas também destacar as suas virtudes. Uma vez mais, é a fraternidade a que permanece. “deste modo, (…) quem cultiva a bondade em seu interior, recebe em troca uma consciência tranquila, uma alegria profunda, mesmo em meio às dificuldades à falta de compreensão. Inclusive, frente às ofensas recebidas, a bondade não é signo de fraqueza, pelo contrário, é autêntica força, capaz de renunciar à vingança. (FT 243).

Padre Eymard finaliza este caminho de fraternidade contemplando o amor de Cristo na Eucaristia; a sua proposta é permanecer neste amor. O centro do amor se encontra em Cristo, que doa-se a nós, no sacramento da Eucaristia. “Oh sim, para ser bondoso, terei a Eucaristia. Comerei este divino maná, para ter doçura em abundância e fazer a minha provisão do dia, pois muito o necessito” (NR 44,101). “Enxergarei, comerei…”, escreve o Padre Eymard. Podemos pensar na contemplação e na comunhão. A Eucaristia nos ensina amor e doçura. Devemos olhar a Eucaristia para enche-la. De fato, a doçura, a ternura, escreve o Papa Francisco em sua encíclica, “É o amor que se faz presente de modo concreto. É um movimento que procede do coração e chega aos olhos, aos ouvidos, às mãos. (…) A ternura é o caminho que percorreram homens e mulheres valentes e fortes” (FT 194).

Através da celebração e da contemplação da Eucaristia, colocamos em ação o amor que nasce do coração e chega até os olhos, os ouvidos e as mãos; façamos vibrar e ressoar a música da Eucaristia, sempre encontramos a força para participar na construção da fraternidade universal. Deste modo, seguindo o exemplo do Padre Eymard, podemos nos converter em “estrelas em meio à escuridão” (FT 222).

15 de dezembro de 2020

Padre Manuel BARBIERO, sss

Foto: Joca (jocadeusepaialexand)
Fonte: Santuário  Nossa Senhora da Boa Viagem

Deixe uma resposta